20/12/2012

minha carreira de revisora III

De meus trinta dias como trainee na Abril, ficou memória funda de três coisas. Sou ruim para guardar nomes: minha memória é mais fotográfica e meu processador mental parece que gosta de imagens e visualizações. O raciocínio sobre a coisa, as emoções associadas àquilo ficam em outros departamentos da minha cabeça, aos quais nem sempre tenho muito acesso. Então às vezes falo das imagens e só aí consigo depreender algum sentido. Desculpem-me se divagar muito.

Bom, são três conjuntos de imagens.

I.
A primeira delas é uma baia onde se sentava um rapaz - coisa rara, lembro o nome dele, Jétero - que parecia imensamente atraente, um beau-laid à la Jean-Paul Belmondo da Marginal do Tietê, com cabelo louro escuro meio rebelde, aquela desenvoltura cheia de vitalidade, de cara larga, nariz achatado e lábio leporino, que dirigia um Opala de capota arriada abraçado à namorada e mais umas três mocinhas alegres e sapecas dentro do carro. Ele mantinha na mesa um ventiladorzinho pequeno, daqueles portáteis, ligado bem diante do rosto. Eu era tímida, sempre fui, até meus 45, 50 anos - apesar de metida a independente, era quieta e encabulada. Então passava pela baia do Jétero e mal olhava. Um dia, não sei por quê, diminuí o passo. Ele me olhou com ar meio interrogativo, tipo "o que foi"; quase morri de vergonha e, para disfarçar, olhei o ventilador e disse: "Pra ter sensação de liberdade, né?". Nunca vi um olhar mudar tão rápido: era como se eu tivesse chegado ao ponto mais exato, ao centro mesmo do que ele sentia e nunca tinha formulado em palavras.

Se aquela franca admiração no olhar dele me envaideceu muito, o que me marcou nessa imagem, se eu for racionalizar, é bem isso: um ventiladorzinho ligado na cara para ter sensação de liberdade. Edificante de uma maneira levemente patética, suponho.

II.
A segunda sequência de imagens é tristíssima e ainda hoje, ao me lembrar dela, fico um pouco deprimida. Como disse, nosso chefe sabia lidar bem com a gente e todo mundo gostava dele. Um dia, ele convidou todos nós para sua festa de aniversário, à noite, em seu apartamento. Estava fazendo cinquenta anos e alguma coisa. Novata, também fui convidada. Peguei o endereço, e à noitinha tomei um ônibus e fui até o Largo do Paissandu, onde ele morava. Quem conhece São Paulo vai entender do que estou falando. Mesmo quarenta anos atrás, o Paissandu era uma decadência só, provavelmente mais do que hoje, com tanto esforço de revitalização do centro urbano mais antigo.

Subi até seu apartamento, um aposento só, escuro e triste. Poupo a descrição do lugar e de meus sentimentos, até em respeito a ele: em todo caso, a sensação física era de coração apertadinho. Ele muito alegre, muito enternecido, muito feliz mesmo. E aquela moçada em volta, rindo, tocando violão, cantando: uma moçada que decerto não ficaria no emprego nem um ano, incessantemente substituída por outra moçada alegre e descompromissada nas vagas de revisor na Abril. Aquele senhor simples, culto e gentil era meu chefe. Olhando para trás, acho que foi talvez por isso que saí da editora ao término de meus trinta dias de experiência.

III.
A terceira sequência de imagens se refere àquela figura sinistra que mencionei no post anterior, aqui. Como disse, nunca soube sua função. Também nunca falei com ele e nunca cheguei muito perto. Grandalhão, sempre calado, taciturno, com ar quase bravo, barba escura cerrada e óculos grossos. Pouco simpática, a visão.

Eu já tinha notado um esporádico vai-e-vem na mesa dele, e um dia - já contei essa história em outro lugar - aparece um rapaz magrelo, tímido, curvado, com um paletó bege surrado, que lhe estende com ar esquivo e sorrateiro um envelope gordo, tipo um pacote embrulhado. Perguntei a meu par o que era aquilo. Me respondeu em tom de segredo: "É que ele é tradutor e o pessoal vem entregar as traduções que faz para ele".

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(continua aqui)