19/12/2012

minha carreira de revisora II

Então lá comecei eu na Abril, na revisão. A sala, na verdade, era um corredor largo que fazia um U com a sala grande onde cuidavam dos cronogramas e fluxogramas das revistas e terminava numa parede. Éramos ali em catorze, divididos em sete duplas, cada qual ocupando uma "baia". Havia cinco baias de um lado e duas do outro. A baia consistia num espaço com divisórias perpendiculares à parede, com uma mesa de bom tamanho e duas cadeiras, uma na frente da outra. Na parede onde terminava aquela espécie de corredor ficava o ponto mais frequentado, o lugar onde tinha água e cafezinho, claro. Na outra ponta, no U por onde a gente entrava naquele huis clos meio claustrofóbico, havia uma mesa solitária, sem divisórias, solta ali, onde se sentava uma figura francamente sinistra. Nunca soube qual era sua função.

Eu já sabia fazer marcação e bater prova, pois tinha aprendido na Edgard Blücher, mas na Abril aprendi a trabalhar em dupla. Um ia lendo o texto, o outro ia acompanhando na prova e fazendo a marcação. Foi quando aprendi a ler batendo a pontuação com lápis, para o colega saber quando era ponto, vírgula, dois pontos. Um código muito simples e eficiente.

Agora imaginem catorze pessoas num corredor, sem janelas, sem portas, separadas aos pares por divisórias de meia altura, sete delas lendo em voz não alta, mas audível para o colega, e batendo pontuação com lápis. Realmente aprende-se a trabalhar em conjunto! Então a gente tinha de modular o tom de voz, conseguir nitidez na elocução, mas falando baixo, para não perturbar os outros, e também porque - já tentaram ler cinco ou seis horas em voz alta, mesmo fazendo rodízio com o colega e parando de vez em quando para tomar um cafezinho? Quer dizer, tem de poupar a voz, senão não há voz ou garganta que aguente.

Algumas vezes por dia entrava um boy com montes de pastas enormes com as provas dentro, recolhia o que a gente já tinha feito e distribuía o novo material. Era sempre uma mistura, Cláudia, revistas de jardinagem, de carros, de saúde, todas com cronograma apertado e tendo de fechar rapidinho. Foi na Abril que aprendi a ter rapidez e eficiência na execução de tarefas, e ao mesmo tempo a ser muito metódica. Pois teu par vai lendo, você vai acompanhando, tem de pegar os erros, as letras faltantes, as letras trocadas, pontuação idem, as manchas, o alinhamento, e vai marcando as correções necessárias, de preferência sem interromper a leitura do outro - no máximo você pede para ir um pouco mais devagar. Então a pessoa precisa ficar esperta o tempo todo e ser bem ágil.

Apesar do ambiente potencialmente estressante, o chefe, um senhor miúdo, baixo, magro, mulato, na faixa dos 50 anos, sempre discreto, mas sorridente, conseguia manter o clima descontraído. Claro que todo mundo era jovem, moçada mesmo, no máximo com uns 23, 25 anos. Nosso chefe tinha o maior traquejo em lidar com a turma, até porque a rotatividade era bastante alta. (Revisão não era propriamente sonho de carreira de ninguém, pagavam pouco, talvez uns dois ou três salários mínimos; então era emprego de estudante mesmo.) A cobrança era intensa e constante, mas invisível, digamos assim.

Meu par era um rapaz alto, meio corpulento, que tinha de se espremer para caber no espaço entre a cadeira e a mesa, estudante de engenharia, nada dado a intelectualismos, muito risonho e afável. A gente chegava de manhã, dizia oi, sentava e começava. Sem história, sem conversa, só aquele zunzum/ toctoc da leitura e do lápis. A cada 40 minutos, mais ou menos, a gente trocava quem lia, quem marcava. Um dia, eis que o chefe senta na minha frente, e começa a ler para mim. Foi um espanto: a voz do homem era um mel, uma cantiga, uma doçura. Daria para aguentar aquilo por horas seguidas (porque outra razão pela qual é preciso fazer o rodízio de quem lê e quem marca é que, a partir de certa altura, aquela voz em cantilena começa a te irritar ou você começa a ficar distraído - então tem de parar e trocar). Acho que ficou uma hora, uma hora e meia ali comigo, trocamos uma ou duas vezes, deve ter achado que estava tudo ok, pois não comentou nem me corrigiu em nada, e foi continuar seus giros pelo setor. Fiquei quase estourando de orgulho e satisfação por ele ter se sentado ali na minha baia, e passei três dias me sentindo nos céus. Incrível isso, não?

Quanto ao trabalho de revisão em si, não tinha nada demais. Sendo só primeira prova, tinha muito mais erro do que numa segunda, claro, e o grau de concentração tinha de se manter constante. Mas era este o serviço; a rotina era simples e a gente levava numa boa. Já era editoração eletrônica, e não linotipo, e as provas vinham na montagem da folha dupla da revista, coladinhas na cartolina, já na diagramação final. Não sei quem e onde batiam a segunda prova. Não éramos nós. (Continua aqui)